sexta-feira, 3 de julho de 2009

Conto e Dois de Julho

Marina me havia estimulado a colocar no blog o meu conto relacionado (sem compromisso histórico) com as lutas do Dois de Julho.

O comentário de Leonardo no post Independência da Bahia se refere a um conto que conheço. A figura histórica livremente referenciada no Tanto Monta é o Corneteiro Lopes, na batalha de Pirajá (novembro de 1822) e não João das Botas (o comandante da frota de saveiros).

O relato de Tobias Monteiro sobre Luis Lopes diz: “Já galgavam os atacantes as encostas dos montes, certos de levar de vencida o inimigo, quando ouviram o toque sinistro de avançar cavalaria e degolar. O corneta, a quem o major Barros Falcão, que comandava a ação naquele ponto, dera ordem de tocar retirada, trocara, por conta própria, o toque destinado a anunciar a derrota dos irmãos de armas, pelo do ataque inesperado, donde veio a desordem e o pânico dos portugueses.

O estratagema providencial de Luís Lopes, que assim se chamava esse lusitano aderente à causa do Brasil, transformou subitamente a ação. Espantados da presença dessa cavalaria imaginária, com que não contavam, os portugueses estremeceram indecisos e, por fim, recuaram“.


Este conto foi publicado no livro o Outro Lado da Ciência, editado por Leopoldo de Meis, mas creio que não há problema de repeti-lo aqui.

Aliás vale a pena ver o livro, que contem contos e relatos muito interessantes, feitos por vários colegas, como o de George dos Reis.


Tanto Monta

Manoel Barral-Netto


Nem Lopes mesmo podia compreender as mudanças tão rápidas ocorridas em sua vida. Decidira permanecer vivendo na Bahia, mais precisamente vivendo com uma baiana, já que o atrativo era mais humano que geográfico. Continuara o seu ofício de corneteiro, mas se questionava sobre as outras grandes mudanças de sua vida.

Apenas dois anos da vinda, e não se lembrava bem da mulher em Portugal. Vivia bem e sofrera com a separação forçada pela convocação de servir no Brasil. Agora, até o calor não lhe parecia a provação experimentada no início. Tão bem acolhido pela família de Esmeralda, já não afloravam os estranhamentos iniciais entre maroto e mulatos. Continuava sem perceber bem os laços familiares dos locais. Família numerosa a garantir casa sempre cheia, demasiadamente povoada. O amontoado de parentes, longe de inibir, atraía outros tão numerosos aderentes.

Com o soldo de corneta, decidira manter casa com Esmeralda, apartada da parentela. Acolheram ainda Mário, o irmão alienado, sem qualquer exigência ou resistência da família. Lopes já se afeiçoara dele. Quase da mesma idade, muitos até reconheciam-lhes parecidos. Ajudou na aproximação o interesse de Mário em aprender os toques da corneta. Além de Esmeralda, a vida tranqüila e os banhos na água morna da praia o foram tornando mansamente baiano.

Corria setembro tão leve, não percebeu logo quanto transtorno lhe causaria a Independência. Imaginou estaria bem como português antigo, não vingasse a bravata, ou como brasileiro novo, prosperasse o reino recém-criado. As virulentas quadrinhas esgrimidas entre marotos e mulatos mostraram-lhe rápido o engano. “Maroto pé de chumbo, calcanhar de frigideira, quem te deu ousadia de casar com brasileira.” A ele dirigida, certamente. Quantos mais, consigo, nesta condição?

Começadas as escaramuças, já via não poder retardar a escolha da nacionalidade. Arrastando-se os embates, acirrando-se os ânimos, arriscava-se ser tido por traidor do antigo e do novo país. Mesmo premido, não lhe acudiam razões para ver um lado mais próprio. Sempre houvera sido assim, mascarava a indecisão com a multiplicidade de argumentos conflitantes. Brasil ou Portugal, tanto monta. Fartou-se deste exercício e aliou-se aos locais. Continuava sem atinar porque, mas isto não lhe causou dúvida ou arrependimento.

Sem pena ou glória, participou de uns quantos embates. Nada merecedor de um termo mais denso. Embates, combates talvez, nenhuma batalha. Estas primeiras refregas, na sua curta carreira militar, pouco ajudaram a moldá-lo herói, nem mesmo valoroso guerreiro. Pouco a distinguir entre valente corneta militar e alegre fanfarra folgazã. Por vezes, esquecia de que lado pelejava. Nenhum arrependimento, nenhum regozijo. Brava faina, valioso repouso, não os distinguia.

Os esparsos embates permitiam voltas freqüentes à casa, que nos domingos nenhum dos contendores combatia. Tementes a Deus, os dois lados respeitavam os dias de guarda. Nestes entrecombates, Esmeralda, sem intenção, o tornava mais brasileiro. Mário, mais belicoso que ele, enlevado pela campanha libertadora, que nem tão alienado assim parecia, aprimorava-se na corneta.

O mesmo alheamento dos humores da guerra o afastou das dores dos poucos ferimentos. Por vezes acidentou-se durante as lutas. Pouca coisa, nenhum tiro direto. Um que outro estilhaço, uma pequena úlcera. Esmeralda os tratava com alguma mesinha ou punha uma colher de pólvora sobre um cancro tardo no curar. Nada carecedor da atenção de facultativo. Aproveitou-se desta indiferença um espinho para causar infecção. Durante uma pescaria, num período de trégua, feriu-se ao alçar uma arraia. Como valorizar mais acidente no lazer que lesão no campo de combate? Nada fez no início, embora fosse a lesão mais dorida que as de estilhaço. Febre e dores o retiveram no leito, levaram-no a refletir. A doença e os calafrios o livraram de umas quantas escaramuças. Ignorantes da causa da febre, receavam os superiores que ela se espalhasse. Sabiam eles da inferioridade de suas tropas, em número e preparo, mas temiam que uma epidemia os deixasse ainda mais desvalidos. Virem buscá-lo, sabendo-o enfermo, anúncio de grande batalha. Quase intimação. Qualquer ausência, que doença se cria fácil, malvista quando se aquece a guerra. Num trânsfuga, motivo de cadafalso. A tenebrosa perspectiva não lhe devolveu forças para levantar. Distante, impossível mesmo, qualquer possibilidade de guerrear. Angustiou-se Esmeralda, desvelou-se, mas lhe faleciam meios para repor as energias que a febre roubava.

Com o prolongar da doença, esvaiu-se a consciência, que basto de força não era. Mais vigor tivera, alistar-se-ia por melhor soldo. Mais brilho, por oficial. Ser corneteiro falava por força e brilho não sobrados. Um ou vários dias, não sabia quanto tempo de ausência.

Continuava sem entender bem porque tanta atenção. Atendido por médicos eminentes do Collegio. Visitado por autoridades. Recém-saído do torpor da febre, não conseguia atinar os porquês. Poderia mesmo ser levado à audiência com o Imperador? Temia que tudo resultasse dos delírios da febre. Tudo indicava agravamento da enfermidade. Provavelmente não escaparia. A atenção redobrada de Esmeralda e a presença alegre de Mário, com demais parentalha em visita constante, o conduziram para o reconhecimento de sua consciência. Cada dia mais claro, falavam verdadeiramente de homenagem e audiência com autoridades.

Antes de partir para a reunião com o governador, soube Lopes, pela gazeta, que era responsável pela mudança do curso da portentosa batalha de Pirajá. Desesperado, o comandante brasileiro ordenara soar retirada, após sustentar dura batalha em franca inferioridade numérica. Tendo-lhe Lopes obedecido ao primeiro impulso, retrocederam os baianos. Transtornado pelo espectro do opróbrio, impulsionado por valoroso brio, Lopes, por sua conta e risco, ressoa furiosamente um “Avançar, Degolando”. Reconheceram os portugueses a engenhosa manobra, desconhecedores que só na mente de Lopes existia. Temendo o ataque pelos flancos, após o fácil e temerário avanço motivado pela ardilosa retirada, os lusos apavorados abandonam a lide. Agora receberia Lopes os louvores, autoridades e povo a homenagearem-lhe o descortino guerreiro.

Calou-se Lopes de revelar que a sua coragem e heroísmo foram mitigados pela inconsciência. Febril, de nada lembrava. Por vezes, maquinava que a febre levara a uma inconsciência parcial, liberando-lhe o espírito para atos que a plena consciência inibiria. Pensava latejar em si um herói a ser libertado, que da auto-indulgência poucos escapam.

Alternavam-se têmpera guerreira e inspiração religiosa. O espírito de algum santo guerreiro ter-lhe-ia inspirado, forte ainda a mística infância portuguesa. Tão potente a ajuda celeste, tudo lhe borrara da lembrança. Ou teria sido Xangô? Que de vitória bahiense se tratava. Talvez assim pensasse Esmeralda. Não saberia. Nem mesmo a ela contava da ausência de lembranças da batalha.

Grande heroísmo e perda de memória não eram inéditos. Assim também ocorrera com Alexandre. De nada lembrava após as batalhas. Tanto se envolvia, tão decidido, tão bravo, ninguém imaginaria transe tão absoluto capaz de malbaratar a sua lembrança. Esta ausência de recordações, frente a um grande desafio, não era apanágio dos hereges, que disto se tratava Alexandre. Assim também ocorrera a Jeanne d'Arc, que jamais soube de ciência certa de todos os seus destemidos atos. Era o que, por vezes, pensava Lopes. Nisto seguia o mau exemplo de autores descuidados que demonstram desmedido descaso pela história. Menos dano causava Lopes, destes delírios não falava.

Por vezes narrava cena ouvida de algum combatente, já que muitos desejavam a amizade do herói. A insegurança por nada lembrar, o temor de descrever impropriamente o glorioso episódio, o fazia falar muito parcimoniosamente sobre Pirajá. Este recato todos exaltavam como modéstia, enriquecendo-lhe a imagem pública.

Tão plenamente feliz esteve Lopes desde quando se lhe reconheceram e exaltaram o heroísmo, resolveu Esmeralda jamais lhe contar que Mário o substituíra em Pirajá e sua glória nascera da insegurança do corneta noviço.




Ilustração acima: Combate de Pirajá Campanha de Independência para libertação da Bahia Episódio do Corneteiro Luis Lopes "Monumento à Independência" Ettore Ximenes - Praça Monumento da Independência. Confesso que não vi nada parecido a uma corneta e nem a um corneteiro, mas é o que está escrito no site.

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